Sociedade

Fazer da fraqueza “Força”

_Luisa MatiasO EXPRESSO do Oriente ficou a conhecer Luísa Matias, uma autêntica lutadora a quem foi traçado um diagnóstico no mínimo assustador: uma doença crónica, incapacitante e sem cura conhecida.
Esta jovem de 37 anos, de quem se poderia dizer que está “na flor da idade” e que qualquer pessoa que a visse descreveria como “perfeitamente normal”, pinta um retrato difícil de acreditar, se não conhecermos a sua história. Descreve sintomas como visão dupla ou enevoada, dormências constantes, perda de equilíbrio, cansaço extremo. Tudo coisas por que já todos passámos… Ou será que não?
A esclerose múltipla é uma doença que se traduz na desmielinização dos neurónios cerebrais e medulares. Como o sistema nervoso central é atacado, os sintomas são múltiplos e assumem diversas formas, algo que pode dificultar o diagnóstico.
A imagem perfeita para descrever a doença é-nos dada pela própria Luísa Matias: “posso dizer que a esclerose múltipla (EM) é uma doença em que acordamos cansados… Mesmo tendo uma boa noite de sono. Encontrei uma metáfora ao longo dos anos: a do mergulhador. Tem tanto equipamento em cima dele que tem os movimentos dificultados. Com o escafandro, ou o fato de mergulho, a botija de oxigénio, os óculos… Eu estou permanentemente dentro de um equipamento de mergulhadora”.
A incapacidade que o doente sente é traumatizante: “é um drama não aguentarmos connosco próprios, daí a propensão à depressão. Não há nada que alguém possa fazer. Quem parte uma perna e tem gesso, as pessoas sabem como ajudar. Mas no meu dia-a-dia, as pessoas não sabem como me hão-de ajudar. Ou fazem o meu trabalho por mim, ou não podem fazer nada”, explica.

Diagnóstico aos 26 anos
Foi a fase mais complicada da doença que a levou a um neurologista, depois de 12 anos sem saber o que tinha. Tudo o que a afectava, tentava superar por si própria… até ao ponto de já não conseguir andar. Aos 26 anos, surgiu o diagnóstico: “fizemos o despiste de uma série de outras doenças até encontrarmos as lesões no cérebro e na espinal medula que denunciam a esclerose múltipla. Essas lesões afectaram a minha marcha: associadas ao calor e a um estado de maior desequilíbrio emocional, ou stress, o meu corpo literalmente bloqueava. Não sentia o corpo inteiro, não me conseguia mexer”… Os sintomas anteriores eram falta de força nas pernas, que não lhe permitiam, por exemplo, correr. No ensino secundário manifestava dificuldades em algumas disciplinas, apesar de conhecer a matéria leccionada: “tinha brancas momentâneas enormes, sobretudo na Matemática”.
O médico de família não sabia o que era, porque não se identifica a EM através de radiografia. O oftalmologista dizia que a sua visão estava bem, não conseguindo justificar os períodos de visão enevoada, dupla ou distorcida… Ainda hoje não usa óculos. “Na verdade, os nervos ópticos inflamam-se pelas perturbações no sistema nervoso central. É um forte indicador de EM”, aponta Luísa Matias.
As perturbações da visão tornam difícil o trabalho típico de escritório, em que a pessoa se senta diante de um computador. Era o caso da nossa amiga, que na altura trabalhava numa empresa na área da comunicação e marketing, domínio que cursou na Universidade de Aveiro.

_Luisa Matias AAP_-_Selo_Finalista_1ª_ed._Realize_o_Seu_SonhoO maior especialista é o doente
Depois de conviver durante tantos anos com a EM, Luísa Matias considera-se uma perita na matéria: “a meu ver, quando passamos muito tempo com um problema tornamo-nos especialistas. Ou para o mal, não conseguindo lidar com a situação, ou para o bem, encontrando soluções”. E acrescenta: “não é o médico ou o enfermeiro que sabe o que é ter uma doença 24 horas, é o próprio doente. Tudo o que aprendi, todo o relacionamento com outros doentes, familiares e cuidadores, foi isso que me impeliu a agir”.
Foi depois de um ano desempregada que decidiu “tornar as incapacidades em capacidades”. A expressão é sua e define o seu lema de vida. Tirou um curso de empreendedorismo e criou uma empresa de formação e de audiovisuais para pessoas com doenças crónicas. Entretanto conseguiu emprego na Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM) e teve de optar pela opção que garantia maior estabilidade, sobretudo tendo em conta a sua doença.
A veia de empreendedora manifesta-se nas iniciativas que foi desenvolvendo, aquilo que mais a apaixona. Em 2010 a Federação Internacional de Esclerose Múltipla (MSIF) promoveu uma acção através da qual um avião percorreu 28 países desde os EUA a alertar para a EM. “Fizemos uma grande iniciativa em Portugal, não só em Lisboa mas também na Covilhã, que expôs as dificuldades dos doentes das zonas do interior do país. Foi óptimo!”, relata entusiasmada.
Em 2011 participou na organização de uma iniciativa em conjunto com os Amigos da Esclerose Múltipla em Aveiro e com o poeta João Negreiros. Dessa experiência, recorda: “contei-lhe num bar barulhento as características e sintomas da EM e ele foi tomando nota num papel. Queria fazer qualquer coisa de diferente para o Dia Mundial da EM. Fiquei impressionada como ele conseguiu passar para a poesia coisas tão em cheio” (o poema pode ser encontrado facilmente na internet, com o título “A dor mente”).
No Verão do ano passado, embarcou na maior aventura da sua vida: a “Oceans of Hope”. Tudo começou com um e-mail da MSIF à procura de doentes para integrar a tripulação de um veleiro na etapa Lisboa-Boston. “Arranjei tudo para a candidatura, esperei dois meses ansiosamente e recebi um telefonema do mentor do projecto. Chorei de alegria! Tive de arranjar tudo à pressa… Esqueci-me completamente da fadiga e consegui, com a ajuda de amigos e familiares, embarcar. Tive de pedir uma licença sem vencimento, o que me obrigou a voltar-me para os amigos e pedir ajuda”, conta.
Curiosamente, no dia em que saiu o barco de Lisboa, 2 de Agosto de 2014, completavam-se 10 anos desde o diagnóstico. “Há uma doente na Dinamarca que diz: «é como se deixássemos a EM e saíssemos para o mar». Foi o que fiz, teve um grande significado para mim”. A iniciativa gerou uma onda mediática muito positiva: “demos outra cara à EM: pode contribuir para dar esperança a quem não consegue andar e ajudar quem recebe um diagnóstico e não sabe como lidar com isso”, completa a aventureira.

Uma doença vivida pela família e amigos
“A família, os amigos e os colegas vivem a doença connosco, é uma doença que não afecta uma pessoa só mas um agregado”, afirma Luísa Matias. Mas também é uma doença que isola muito. “Temos de travar o isolamento. Temos de lutar pela dignidade dos doentes de EM”.
Sobre este assunto, não tem dúvidas: “uma das formas de indignidade é não poder trabalhar. Demasiado cedo, a EM tira a dignidade às pessoas: deixar de ver, deixar de andar, de sentir o corpo. Tornarmo-nos trapalhões de tal maneira que parecemos bêbedos. Ter medo de falar em público porque nos esquecemos das coisas. Sintomas que todas as pessoas têm mas que nós temos muito mais. Temos de ajudar os doentes a não criar um auto-estigma”, defende a «especialista».
Luísa confessa ter passado muito tempo deprimida, mais do que aquilo que quis acreditar. “Passei muito mal por ter de desistir de várias coisas, por não acreditar que conseguia fazer outras”. Isso fê-la valorizar as “pessoas invisíveis”: “tive um grande amigo, um dos pilares fundamentais de uma das comunidades de doentes de que fiz parte, o Gangue da EM, o Ruca de Leiria. Ele foi progressivamente perdendo a mobilidade. Praticamente não andava, mas o pouco que podia fazer, com a ajuda do pai (que o vestia, lhe dava banho e o levava para o computador) era muito para uma comunidade enorme de doentes na internet”.
E, com respeito e admiração na voz, continua: “ele punha todas as pessoas na mesma sala para conversar, através do Messenger. O grupo foi crescendo, combinaram-se almoços em todo o lado, e sei que foi um alívio e um apoio até para os familiares… Ele dizia sempre «tudo passa e está tudo bem». Era uma inspiração para todos, sempre com uma palavra de esperança. Ele fez das incapacidades capacidades. A mensagem da EM chegava a todo o lado, com ele. Ajudou a pôr de pé o «Move-te pela EM», que colocou milhares de pessoas a caminhar e a andar de bicicleta pela EM. O essencial é associarmo-nos às pessoas para podermos fazer coisas que sozinhos são impossíveis”.

_Luisa Matias Oceans of Hope_Team_Chegada a BostonUma mão cheia de conselhos
Para a nossa jovem, o importante é “inspirar as pessoas a viverem de acordo com o seu potencial”. Os doentes com esclerose múltipla precisam de “descobrir o seu potencial e procurar atingi-lo todos os dias”.
Certo é que, tão importante como os medicamentos é o factor “bons testemunhos”: o dos doentes que lidam melhor com a doença e tentam viver melhor a sua vida. Alguns conselhos podem ajudar: Luísa Matias confia nos benefícios de reduzir o consumo de laticínios, sobretudo o leite de vaca, e também de carne de vaca. Pelo contrário, o consumo de óleos essenciais (ómega 3) faz bem ao sistema nervoso central. E recomenda fazer o exercício físico possível, e que a pessoa gosta mais: “se a pessoa consegue caminhar, deve fazê-lo, nem que seja andar em casa. Se estiver confinado à cadeira de rodas, pedir a alguém para sair, porque o ar puro é muito bom. As limitações são menos sentidas se pensarmos naquilo que ainda conseguimos fazer, e não no que já não conseguimos fazer. Andar de bicicleta, dançar, passear”…
Mais surpreendente é o conselho final: “a gratidão também faz maravilhas”. Luísa Matias recomenda “pensar numa ou duas coisas pelas quais estamos agradecidos todos os dias”. E relata mais uma experiência na primeira pessoa: “na altura em que não me conseguia mexer, pensava em como estava grata pela companhia dos meus familiares, em ter um tecto para me proteger. O «tudo o resto» geralmente é o mais importante, os pilares da nossa vida. O que comemos, onde vivemos, o que vestimos, as pessoas que temos à nossa volta”.
Deixa ainda um desafio aos doentes: “usem a EM não como factor negativo mas como alavanca para acontecerem coisas mágicas. Eu hoje posso dizer que atravessei o Atlântico de barco, e devo-o à EM. Se pude fazer isto, o que é que não posso fazer nas travessias do dia-a-dia?”.
E termina: “o Alexandre Dias correu uma maratona no Porto. O Diogo Tavares correu uma meia-maratona. A Melanie Saramago levou a tocha olímpica em Londres em nome das pessoas com doenças crónicas. A Catarina Lima está na América do Sul a seguir os seus sonhos. As pessoas normais seguem os seus sonhos. Guiemo-nos por estes exemplos, não pelo «não sou capaz», isso tem de ser riscado do nosso dicionário”.

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