Reportagem

“A Capoeira é a minha vida”

No coração de Marvila, o grupo Capoeira Beija-Flor cresce cada vez mais, sob o comando de um mestre com incrível força de vontade, conhecido no mundo do desporto como Brancão.

O mestre Brancão é uma soma de improbabilidades. Quem olha para este atleta bem constituído, a conversar de forma animada e com desenvoltura, sem o conhecer, não dirá que é surdo, possuidor de uma deficiência nos membros, que sofre crises agudas de dor que lhe tolhem os movimentos… E que até possui dístico de deficiente para o veículo que conduz.

De facto, com o aparelho auditivo e focando a sua atenção no interlocutor, António Oliveira é perfeitamente capaz de manter connosco a conversa que resultou nesta reportagem e de nos contar uma história apaixonante de superação e persistência, com o lema “união, amizade e força”. Tal como é capaz de dar um treino de duas horas, elevar os pés à altura das nossas cabeças no espaço de um segundo ou executar o movimento do beija-flor, precisamente o que escolheu para dar nome ao seu ginásio.

Aos 43 anos, este licenciado em Educação Física foi estofador e decorador antes de se lançar na aventura da sua vida: a criação de um centro de capoeira (e ginásio), aberto a gente de todas as idades, na freguesia que o viu crescer.

Os problemas de audição foram diagnosticados aos 11, 12 anos, porque até ali ninguém tinha percebido que o alheamento do pequeno António não estava relacionado com o facto de não gostar da escola. Ouvia mal do ouvido esquerdo e ainda menos do direito. Não usou o aparelho que lhe foi receitado, por vergonha dos colegas, e perdeu gradualmente a audição, embora esteja convicto de que terminaria surdo de igual modo. Conta-nos que sempre gostou de fazer grandes corridas e de praticar desporto porque a surdez levava-o a não gostar de estar com os gangues, a beber e a fumar.

“Quem me ouve a falar com alguém não diz que eu sou surdo e quem me vê a fazer o pino não vê que os meus braços não estão esticados. Olham para mim e não vêem o meu problema. Estou aqui a falar consigo e ninguém diz que eu sou surdo”, conta-nos, divertido.

As pernas e braços não têm a amplitude de movimentos de uma pessoa saudável, tem problemas na anca e há dias em que as dores são de tal modo graves que não consegue andar. “Tenho parafusos na cervical, nos braços… A capoeira foi a ferramenta que me permitiu ultrapassar todos estes limites”.

Ginásio Beija-Flor

O centro Capoeira Beija-Flor surgiu em 1998, juntando os mestres Brancão e Come-gato, que juntos quiseram criar o primeiro grupo de capoeira português.

O primeiro contacto do nosso amigo com a modalidade foi na praia: ainda adolescente, ficou extasiado com os movimentos que viu enquanto um grupo treinava no areal. Na altura, António Oliveira já praticava karaté, mas apaixonou-se pelas rasteiras, pelos mortais e pelos movimentos próprios da capoeira, nomeadamente o “beija-flor” e o “chuto na lua”… A beleza dos golpes seduziu-o por completo. Inscreveu-se no Chapitô e a sua história evoluiu a partir daí. Às 19h saía do trabalho como estofador decorador e ia treinar nas academias. Começou a ministrar aulas em vários ginásios, mas sentiu a necessidade de ter o seu próprio espaço, porque não sabia dizer não às crianças e jovens desfavorecidos que não podiam pagar as mensalidades dos ginásios.

“A roda de capoeira ensina muito. A roda é vida”, explica o mestre com um brilho nos olhos. “A criança que não sabe nada e o doutor encontram-se. Não há rico nem pobre, há duas pessoas descalças a jogar capoeira. O gigante de dois metros não intimida, não está ali para magoar nem humilhar o adversário, é uma dança com dois corpos que se complementam, em diálogo corporal. O retorno é imediato, somos postos à prova quando entramos na roda, e quando fazemos o bem recebemos o bem. A disciplina é enorme: uma criança não entra na roda antes de o mestre baixar o berimbau; um aluno não graduado não compra o jogo, espera que o aluno graduado o chame”.

E depois há a vertente musical, com o berimbau, o atabaque, o agogô, o pandeiro. Quase todas as pessoas gostam de música, como dirá também Brancão: “Eu gostava muito, sei que era feliz ao ouvir música. A música traz ainda mais alegria à capoeira. E mesmo os mais novos aprendem as estrofes compridas e cantam-nas, as pessoas ficam contagiadas quando vêem o grupo Beija-Flor!”.

O grupo tem 60 elementos, o que já é bastante, mas trabalha com 696 crianças nas escolas. Cada turma treina uma vez por semana, ao abrigo de um projecto de educação e desporto cozinhado em conjunto com a Junta de Freguesia de Marvila e a Câmara Municipal de Lisboa.

Brancãozinho dá cartas na Europa

Gonçalo Oliveira, 18 anos, é Brancãozinho no mundo da capoeira. Filho do mestre Brancão, é quem leva a capoeira aos alunos do 1.º ciclo, já com 15 anos de prática (começou com apenas 3 anos). Já o vimos mostrar o seu talento em várias ocasiões e ficámos rendidos à sua técnica e velocidade.

Foi algo que me foi dado pelo meu pai e sempre sonhei em ter o meu grupo, em dar aulas e passar às crianças o melhor que sei, tal como foi passado para mim”, revela-nos. Ganhou vários campeonatos internos e internacionais, mas salienta que o importante na capoeira não é propriamente a competição. A magia está em outras coisas: na interacção, no convívio, na união do grupo.

O sucesso da Capoeira Beija-Flor traduz-se pelos numerosos convites: têm percorrido a Europa para participar em eventos desportivos, sejam de competição ou não, mas as raízes permanecem sólidas na Freguesia de Marvila.

No ginásio instalado na Rua João José Cochofel, nas traseiras da Biblioteca de Marvila, há três treinos por semana, por volta da hora de jantar. Depois, há também dois treinos semanais no Pavilhão dos Lóios e em Sacavém, além das aulas nas escolas da freguesia. Poderá dizer-se que o espaço é pequeno para tantos praticantes, mas não é menos verdade que, com este grupo alegre, dinâmico e respeitador, cabe sempre mais um!

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