Reportagem

Uma força da natureza

Joaquina Flores, aos 70 anos já perdeu a conta à grande quantidade de medalhas e taças que arrecadou ao longo de mais de 20 anos da prática de atletismo, uma carreira que começou aos 49 anos de idade. No rosto tem sempre um sorriso contagiante que condiz com o seu espírito jovial, no coração guarda o carinho e o apoio das pessoas que lhe dão forças para continuar o seu percurso até à meta. Em entrevista ao EXPRESSO do Oriente, Joaquina Flores, conhecida internacionalmente por Maria de Portugal, conta-nos como começou esta aventura pelo mundo do atletismo

Antes de mais diga-nos, onde é que vai buscar tanta energia?
– Há colegas que brincam comigo a perguntar o que tomo ou faço para ter tanta energia, mas a verdade é que não tomo nada de especial. Tenho uma médica de família, a Ana Martins, do Seixal, muito querida que me tem acompanhado desde os 61 anos. Só me manda comer um pouco mais de sal porque tenho, por norma, a tensão baixa. Como é óbvio, tenho alguns cuidados com a alimentação mas não exagero. Se calhar o meu segredo é levar as coisas na desportiva, corro porque gosto. Tenho as medalhas no peito e os troféus no coração e que são o carinho que todos me dão, que me dá força para as ganhar.

Quando é que se iniciou no atletismo?
– O meu irmão, também atleta, andava com uns problemas pessoais e por isso comecei a acompanhá-lo nos seus treinos no campo 1.º de Maio, da Inatel. Como ia todos os dias com a minha filha ele sugeriu-nos que levássemos umas sapatilhas e que começássemos a correr à volta do campo, mas nas calmas. Aliás, ele dizia assim: “Tens que deixar esse teu ar feminino de correr”. Comecei um pouco tarde, aos 49 anos, mas acho que ainda fui a tempo. Iniciei-me como sénior, porque antigamente não havia provas para veteranas e ganhava no geral, a concorrer com
jovens raparigas de 18 e 20 e tal anos.

Praticava algum tipo de desporto?
– Nunca pratiquei algum tipo de desporto. Os meus pais não permitiam que saísse de casa ou que tivesse alguma actividade, eram outros tempos, como sabe. Só depois de casada é que comecei a fazer tudo o que não podia fazer.

Qual foi a primeira prova em que participou?
– O meu irmão incentivou-me e à minha filha, em jeito de brincadeira, a participar numa prova em Corroios. Como era a primeira vez colocou-nos atrás de todos os participantes e disse para não acelerarmos muito. Fomos durante algum tempo com a ambulância a acompanhar-nos o passo até que, quando chegámos ao Laranjeiro, começámos a passar raparigas e rapazes. Comecei logo a ouvir aquelas boquinhas, do género: “Que é que aquela velha pensa que está a fazer ” e “elachega ali e volta já para trás”. A pouco e pouco fui alcançando o meu irmão que já se questionava se nos estávamos a aguentar. Quando ele olhou para trás apercebeu-se, perplexo, que já vínhamos no seu encalço, quase nem
podia acreditar. Acabei em 3.º na geral, contra homens e mulheres mais novos. A partir daí comecei a levar o atletismo mais a sério. Tomei-lhe o gosto e pronto, cá estou eu.

Qual foi a reacção da sua família quando decidiu competir?
– Um pouco complicada. O meu pai ao início não reagiu muito bem, mas ele também já não mandava na minha vida, pois eu já era casada e tinha a minha filha. Por exemplo, a minha irmã mais velha chamava-me maluquinha no início, agora já se sente orgulhosa. Volta e meia há um ou outro que, ainda hoje, me tenta tirar o atletismo da ideia. Dizem que que já não tenho idade para isto. Mas não lhes ligo, só quando eu
realmente vir que me prejudica muito é que deixo de praticar.

Quem é que lhe dá mais apoio?
– Eu não podia fazer o que faço se não fosse o meu marido. Porque ele é tudo na minha vida, é meu pai, meu irmão, meu companheiro e acima de tudo é o meu empresário. Uma vez que não tenho apoios, se não fosse ele eu não podia fazer o que faço. É ele quem trata de tudo, que me alerta das provas que vão surgir, que trata das viagens e que me ajuda nas inscrições. O que me deixa triste é ter oito irmãos e o que mais me
apoia e que se orgulha de mim é o que se encontra nos EUA, o meu sobrinho e o meu irmão que também é meu treinador.

Quantas medalhas ganhou até hoje?

– Já nem consigo precisar o número correcto, pois são muitas, como reparou pelas que tenho em exposição nas vitrinas. Para além das centenas de medalhas e taças que ganhei em provas locais por todo o país, inclusive nas ilhas. Já ganhei em campeonatos do mundo e da Europa 14 medalhas de ouro, 14 de prata e 10 de bronze.

Quem financia as suas viagens para as provas? Tem outros apoios?
– Eu não tenho praticamente nenhum apoio, só o do meu empresário, que é o meu marido e o que a Junta de Freguesia de Moscavide e a Câmara de Loures me dão, que é pouco, nem para uma inscrição num campeonato dá, mas é sempre bem-vindo. Por isso com o pouco que tenho da minha reforma e do meu marido, e como sou poupada, vai dando para custear as minhas despesas. Não vou à custa de ninguém mas também não tiro nada da boca para poder competir.

A Federação não dá apoio?
– Pertencemos à federação de veteranos mas esta não se lembra de nós. Fomos ao campeonato da Europa, tal e qual os mais novos vão a um campeonato, e não levamos qualquer ajuda. Lamento que não se valorize o esforço dos Veteranos. Só falam dos jovens que há pouco tempo arrecadaram quatro medalhas, dos 40 portugueses participantes… Só eu trouxe três deste campeonato, fora as dos meus colegas.Deviam apoiar-nos no mínimo com equipamentos e com o pagamento das inscrições.

Qual foi a prova que mais a marcou?
– Os meus primeiros 15km em Setúbal. Havia muita gente a participar e a assistir. A certa altura, numa curva, ia eu à frente com o pelotão colado a mim, há uma criança que deita a cabeça de fora e com uma angústia muito grande, julgando que eu estava em último, grita: “oh senhora não desista, não desista”. E hoje em dia não há prova nenhuma em que, quando me sinto um pouco cansada, não pense nesse miúdo e nas suas palavras de força. Ainda hoje gostava de poder ver essa criança para lhe dar um abração pelo apoio que me deu.

Que conselhos daria a quem quisesse iniciar-se no atletismo?
– Não devem começar logo a correr, devem ir com calma. É que há pessoas que começam logo, porque são jovens, têm força e genica, mas no outro dia já estão cansados e não conseguem correr. Começam as desculpas “ah hoje não vou correr ” e quando se sentem um bocadinho melhor tornam a correr intensamente, está mal. Devem fazer todos os dias um bocadinho de exercício para se irem habituando. Eu também
comecei assim, ao início comecei a andar. Depois dava um trotinho e retomava a andar. E ia alongando o tempo de trote. E mais tarde, com o
treino, o próprio corpo já pede para aumentar a intensidade.

Veio recentemente da Hungria com três medalhas, como lhe correu a competição?
– Correu muito bem, mas teve os seus percalços. Para já estava um pouco mal organizada, o hotel era muito longe, havia poucos autocarros, só de hora a hora, o local para buscar os cartões eradistante e não tinha ninguém para nos dar apoio. Custou-me correr com temperaturas tão elevadas, dava impressão que vinha fogo da pista. E levar a meio do percurso com o chuveiro de água para nos refrescar fazia-me confusão e fez-me abrandar o ritmo, por não estar habituada, mas mesmo assim foi positivo. Apesar do calor intenso que se fazia sentir consegui arrecadar uma colecção de medalhas, uma de cada, 10.000 metros medalha de ouro, 5.000 metros medalha de prata e 1.500 medalha de bronze.

Projectos para o futuro?
– O que queria era mais saúde para poder continuar a competir mais um pouco. Vou continuar a participar em provas por cá e já tenho um convite para ir aos Açores, a São Miguel. Convidam-me todos os anos com direito a tudo pago e sou sempre bem recebida. De acordo com o presidente da Câmara Municipal, sirvo de exemplo para as senhoras de lá. Pretendo ainda escrever um livro a contar as minhas aventuras pelo mundo do atletismo, mas isso ainda vai levar um bom tempo a ficar pronto.

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One Comment

  1. Li este artigo só agora, 20.3.2016, lembrei-me hoje, a ver a reportagem da meia-maratona no Telejornal, da tão simpática Joaquina Flores que conheci na praça de Cruz de Pau, onde vendi flores. Há muito tempo que não a vi, espero que esteja bem. Para mim inesquecível a sua maneira de ser, aberta, otimista, um prazer falar com ela. Gostaria escrever melhor, mas sendo Alemã não domino totalmente o Português. – Lisa Goll de Oliveira

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