Sociedade

Imagine atravessar a Av. Liberdade de olhos fechados e só com uma bengala

 

Fomos conhecer a APEC – Associação Promotora do Ensino dos Cegos, uma casa com 130 anos de história e um importantíssimo papel na vida de quem não vê.

No n.º 95 da Rua Francisco Metrass, em Campo de Ourique, encontramos a APEC / Instituto António Feliciano de Castilho. Fundada em 1888 com a missão de oferecer resposta ao nível da integração e reabilitação social para a população com deficiência visual, a APEC trabalha todos os dias para promover maior autonomia e participação social das pessoas que assiste, faculta formação em várias áreas e apoia as famílias e cuidadores informais.

Nas suas instalações, no domicílio ou na comunidade, a actividade da APEC passa pelas aulas de informática, de braille e de inglês, pelo apoio psicossocial para utentes e familiares, pela estimulação sensorial ou por aquilo a que se chama “competências básicas de autonomia”, “actividades da vida diária” e orientação e mobilidade. Coisas como cozinhar, fazer a lida da casa ou gerir o dinheiro carecem de formação específica para uma pessoa que acabou de cegar.

A APEC dispõe ainda de uma biblioteca com livros braille e de uma biblioteca digital com cerca de 34 mil livros, em parceria com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. A sala snoezelen para estimulação sensorial e a sala de informática resultam de um apoio da Fundação EDP.

Chegar a cada vez mais pessoas

Foi no Instituto Feliciano de Castilho que se formaram muitas pessoas cegas e que dali saíram para os seus empregos. O acesso ao mercado de trabalho é um dos focos da actividade da casa. Isto mesmo nos conta Vítor Graça, presidente da instituição, que entrou no ano 2000. “Os Censos diziam que existem 163 mil pessoas sem ver em Portugal. Quantos serão na realidade, ninguém sabe”, aponta o dirigente.

É por isso que a APEC quer chegar a um público cada vez maior: “Queremos chegar àquelas pessoas que cegaram com diabetes, com glaucoma, com descolamento da retina e que estão isoladas em casa. Precisamos de fazer chegar a informação sobre a nossa actividade a estas pessoas ou às famílias destas pessoas. Achamos sempre que a cegueira só acontece aos outros e não estamos preparados para quando nos acontece a nós ou aos nossos. E aí fazemos o quê? Atravessamos a Av. da Liberdade com uma bengala? Deixamos de ir à internet, de ir ao balcão de um banco, de ler uma carta? Não! É esse trabalho e essa formação que fazemos aqui. Estas pessoas têm de poder voltar novamente ao mercado de trabalho e têm de se poder sentir úteis, activas, nunca um fardo para os seus”.

Quem o diz é alguém que cegou aos 26 anos e que teve de “virar tudo ao contrário” para voltar à vida activa. “É fácil? Não, não é. Mas o que é que é fácil na vida? Vivemos muitas vezes no limite do risco, como no exemplo de atravessar a avenida com uma bengala. Mas vivemos!”, resume com simpatia.

Amália e Joaquim

Falamos com Joaquim Rodrigues, natural de Braga, aluno recente na APEC e membro da direcção. É-nos apresentado como “o homem do desporto”, já que é praticante de goalball, uma modalidade para cegos de que já falámos no nosso Jornal em edições anteriores.

“O desporto ajuda-nos muito, a nós deficientes, no dia-a-dia. O exercício físico e a actividade desportiva ajudam-nos no equilíbrio, na orientação, também do ponto de vista da auto-estima e da realização pessoal”, enumera Joaquim.

Nasceu com retinose pigmentar, o que significa que foi perdendo a visão progressivamente até deixar de ver por completo cerca dos 15 anos de idade. “Não foi de forma alguma o fim do mundo, até porque tive tempo para a adaptação. Trabalhei na metalurgia, vim para Lisboa em 1993 e frequentei alguns cursos de música, informática, através dos quais conheci a Associação”.

O goalball é uma modalidade desportiva de que gosta bastante, sendo que representa a UCAS – União de Cegos e Amblíopes do Seixal.

Já Amália Meira, natural de uma aldeia do litoral algarvio, chegou ao Instituto com apenas 9 anos. Nasceu já praticamente cega e passou pelo desenraizamento da família, algo que classifica como muito difícil, mesmo tendo sido uma decisão sua: queria aprender a ler e escrever como os meninos cegos.

“Depois da quarta classe, estudei música, piano, solfejo, português e francês… Leio braille como o senhor lê tinta, mas nem todos conseguem desenvolver assim o tacto”, garante.

Contou-nos a história de como se empenhou para que as meninas cegas, ou seja, as alunas do sexo feminino, pudessem também entrar no liceu. Fez parte do primeiro grupo de 10 alunas cegas a fazer exames de admissão ao liceu. “Foi uma grande luta, tivemos de fazer uma grande pressão e um grande esforço para aprender a dactilografia normal. Todas tivemos aproveitamento, no Liceu Maria Amália, e todas quisemos seguir os estudos. Íamos tendo o estudo página a página, tudo a conta-gotas, à medida que as páginas dos livros iam sendo passadas para braille, foi muito difícil”.

Não ficou por ali. Teve aulas de inglês, conseguiu uma bolsa Gulbenkian, fez exames de admissão à faculdade e frequentou um curso de Germânicas que não conseguiu terminar porque se empregou entretanto. Casou, tem uma filha professora de Ciências e Matemática e também uma neta.

Não devemos precisar de alguém para ir beber um café

Depois de uma visita às instalações da APEC, em que observamos os computadores com software de som, a máquina de escrever em braille e os equipamentos da Sala Snoezelen, ficamos a conhecer um pouco mais sobre as reais necessidades das pessoas cegas.

Ao longo da nossa conversa com Vítor Graça, recebemos múltiplos exemplos. Uma pessoa cega não deve ter de pedir a ninguém para ir beber um café. Não deve ter de esperar pelos outros se se quiser ir embora. Não deve precisar de perguntar a outro passageiro de autocarro em que ponto do trajecto se encontra em determinado momento.

Precisamos de fazer mais para apoiar a autonomia destas pessoas até porque, como nos dizia o presidente da APEC, “Não cegamos apenas com um glaucoma ou a diabetes; um acidente de carro pode fazer coisas do arco-da-velha”. Comecemos por aceitar melhor a diferença!

 

 

EdoO – As pessoas, os decisores políticos, a sociedade em geral, estamos suficientemente conscientes das necessidades das pessoas cegas?

Vítor Graça –Em termos de leis estamos excelentes; em termos de aplicação dessas leis, aí já é pior. Isto levava-nos a outra discussão mais aprofundada, que é a da sensibilização da sociedade para a aceitação da diferença e das pessoas com deficiência. Quando se colocam sinais sonoros, há muitas pessoas que moram ao pé desses cruzamentos e que reclamam porque o ruído as incomoda. As pessoas são egoístas. Os autocarros já tiveram informação audível, com o anúncio das paragens… deixaram de ter! Não posso ir no autocarro a pensar na minha vida, ou noutra coisa qualquer, porque se me distraio perco a paragem em que queria sair! Tenho de tomar atenção às curvas, se está a virar para a esquerda ou para a direita. A inclinação das rampas de acesso nem sempre é a correcta, muitas vezes não são testadas por ninguém antes de estarem prontas. A rampa da própria Assembleia da República não está adaptada para cadeiras de rodas, o que é muito revelador. A população tem de aceitar melhor a diferença e há muito a fazer ainda. É impossível para um cego andar na zona das Portas de Santo Antão, porque tropeça de certeza em qualquer coisa. As novas gerações têm um espírito mais aberto e temos a esperança de fazer no nosso país um caminho mais inclusivo.

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One Comment

  1. A VISÃO, o olfato, o paladar, a audição e o tacto fazem parte do sistema sensorial, responsável por enviar as informações obtidas para o sistema nervoso central, que por sua vez, analisa e processa a informação recebida. Faço um apelo áqueles que tem o poder de fazer, e aprovar leis, que tomem isto em consideração, e criar condições para que o dia a dia do cego seja mais apoiado,e mais tranquilo.

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